Não sonho com estrelas

NÃO SONHO COM AS ESTRELAS é o primeiro volume da trilogia RETROCESSO: Uma história de amores não correspondidos, paixões, sofrimentos, questionamentos, suspense e terror. Uma história onde o presente só pode ser explicado pelas escolhas do passado

domingo, 30 de maio de 2010

Vandeir Freire


NÃO SONHO
COM ESTRELAS




TRILOGIA RETROCESSO
VOLUME I





PARA
EDERSON MARQUES,
POR DAR E IDÉIA;
E
BRUNO PEREIRA,
POR INSISTIR.








Existe um outro tipo de tentação, mais perigosa ainda. Essa é a doença da curiosidade (...) É ela que nos leva a tentar descobrir os segredos da natureza, aqueles segredos que estão além da nossa compreensão, que não nos podem trazer nada e que os homens não devem desejar aprender (...) Nessa imensa selva, cheia de armadilhas e perigos, eu tenho me afastado, e me mantido longe desses espinhos. No meio de todas essas coisas que flutuam incessantemente à minha volta no dia a dia, nada jamais me surpreende, e eu nunca sou tomado por um desejo genuíno de estudá-las (...) Eu não sonho mais com as estrelas.


— SANTO AGOSTINHO



Capítulo 1

Entrevista com a morte





1º. De dezembro de 2007



Anunciava-se na televisão, diante dos olhos ávidos dos telespectadores, durante os intervalos comerciais – seja isso ao meio de telejornais, novelas ou qualquer que seja o programa – as chamadas duma atração conhecida como Divã.

Dizia-se durante o informe que a morte seria entrevistada naquela noite. Isso punha os espectadores mais próximos do aparelho, segurando mais firme os braços da poltrona, querendo a repetição da mensagem. Se os produtores tinham por meta angariar telespectadores, o primeiro alvo já fora alcançado. Quem não tem dentro de si a comichão da curiosidade?

Aquela equipe trazia na boca o gosto do sucesso; e na mente, idéias para mantê-lo sempre líder de audiência, dobrando, como vinha acontecendo, o número de patrocinadores e angariando fundos muito polpudos para a emissora. Esse dinheiro começou vir um pouco mais fácil quando o programa, estando no ar há apenas um ano, leva dum júri, por unanimidade, o Troféu Imprensa na categoria de Melhor Programa de Entrevista de 2006. Pronto, tendo em mãos uns dos maiores prêmios da televisão brasileira, choviam patrocinadores, e por muitas vezes outros patronos eram recusados. O feito impressionava a crítica, que tecia por entre as páginas de jornal, comentários que enalteciam as qualidades dos elaboradores e do apresentador.

Por esses dias, no caderno de televisão, um jornalista de grande credibilidade escreveu: A muito a televisão brasileira não via qualidade, imparcialidade e respeito, dentro de atrações televisivas: O programa Divã é prova de que pode haver informação e cultura dentro de um veículo popular... E ia-se longe esse texto, quase toda página, muitas e muitas linhas, até que no último parágrafo, dava-se o nome do criador do programa, Osmar Drummond, que também tinha por função apresentar o show: composto quase dum plágio do programa Roda Viva da TV Cultura – o ancora e mais quatro debatedores escrutinavam o entrevistado com qualquer tipo de pergunta, obtendo por resposta, muitas vezes, rugas na testa ou um silêncio quebrado pela curiosidade de outrem.

Genuinamente palco de assuntos que deixava outras emissoras temerosas, Divã trazia a baila, como fez no seu programa de estréia, pondo na arena um médico favorável à eutanásia, assuntos que os amantes da televisão, pagando com sono a menos, paravam para assistir. Houvera há dias, até mesmo um sacerdote partidário da união homossexual, com citações bíblicas da importância do amor sem distinção de sexo ou cor. Aí é que se montou escândalo: jornais diziam da pachorra deslavada com que Osmar apresentava aquilo, trazendo na face uma máscara de sarcasmo e nas mãos o próprio tridente de Satanás, a cutucar de forma escandalosa a Santa Madre Igreja; essa, por sua vez, despejara nas portas da emissora, seus bispos, a apontar os dedos aos produtores e patrocinadores, clamando para que se tirasse do ar aquela anunciação do apocalipse.

Dias foram necessários para que os nervos parassem de latejar, foi-se Osmar descansar nas praias de Ipanema e ouvir, sem ter pedido, jornais tecerem-lhe comentários de apoio: a ditadura e a censura foram-se a muito e podia o homem opinar sobre o que bem entendesse. Não tinha o telespectador o controle-remoto em mãos para mudar de canal? Que o fizesse, então!

E assim, deixando as águas salinas da terra da Bossa Nova, Osmar voltou aos estúdios da emissora, nas terras do interior de seu estado de origem. Formulou mais entrevistas, e não se passou dias no ar sem que houvesse novo escândalo, novas passeatas dos defensores da moral, e picos de audiência; dessa vez tudo se devia as palavras de um especialista em relações sociais: O casamento estava morrendo, o homem tem que se entregar aos deleites da poligamia! Bastou essa citação do “ser” para que se fizesse novo pandemônio.

Trancado em seu escritório, detrás do estúdio, Drummond esperava os vendavais passar, aprontando outros convidados que lhe fariam a audiência explodir nos marcadores. Nunca, num passado curto, imaginou ser apresentador de televisão; quando jovem – filho dum promissor e abastado psicanalista – pensava pisar por sobre as pegadas do pai, trilhando o caminho que o levaria a um consultório, curando, supostamente, a loucura incurável. Contudo, trancafiado na biblioteca de sua casa, foi descobrindo os pensadores, analisando os adágios de Cícero, Sócrates, Confúcio; quando chegara o momento da verdade – a escolha da profissão – deixou o pai com a clientela, adentrando no campus, sentando-se na primeira carteira duma turma que se tornariam Filósofos.

Na mesma carteira, dois anos de muito amor pela Filosofia, quis aprofundar-se não só na história do pensamento, quis arriscar-se a cavalgar a própria História: de manhã, ocupa-se com Francis Bacon, Arthur Schopenhauer, Bertrand Russell e Émile-Auguste Chartier; a noite, logo após as 19 horas, tinha-se sobre a mesa, onde outrora se encontrava os circunspectos pais do pensamento, a história do mundo: a Idade da Pedra, o Renascimento e a contemporaneidade.

Quando se formou em Filosofia, tinha idéias de escrever livros questionadores sobre a sociedade, a moral, a ética e a política; entretanto, quando recebeu o certificado de História, a idéia era romancear a biografia do mundo.

E o fez: escreveu em um ano três novelas muito bem pesquisadas: o primeiro se passava no Brasil de Pedro II, em seguida teceu a história da colonização da América e por fim articulou a mais bela narração sobre a famosa invasão à Tróia. Essas obras puseram-lhe na estante grandes prêmios de literatura e traduções em vários países. Por fim, depois de mais dois anos de pesquisa, lançou uma trilogia que discorria de forma simples e arrebatadora os períodos homéricos, arcaicos e helenísticos; com isso tornou-se um dos escritores de romance histórico mais conhecido no mundo, e lhe caíram os olhos duma emissora que gostaria de tê-lo para apresentar um programa de entrevista.

De início a idéia era entrevistar escritores, mais isso Osmar não quis. Onde já se viu palrar com seus concorrentes; ele era o grande escritor que queria falar com gente do povo, assuntos da populaça – surgia Divã.

Tivesse apenas fama e inteligência, já teria contrato assinado para tevê; no entanto, apresentava mais atributos: duma simpatia que fazia o coração duma megera encher-se de luz – bastava aquele sorriso brilhante cortar-lhe a face – a pele branca exposta aos refletores dava-lhe brilho, como se ali estivessem vendo uma divindade; o cabelo grisalho, sexy nesses tempos onde o assunto era maturidade, ia-se muito bem com àqueles lagos de águas cristalinas – como lhe dizia as fãs, numa referência vulgar de seus olhos. Não havia quem acreditasse que aquele homem, de corpo tão esbelto e ao topo de quase dois metros, já ia pondo os pés na casa de sessenta e três verões; e que as fãs não se animassem muito a seu respeito, uma vez que trazia ao braço, no seu passeio pelas ruas, sua senhora, mulher que lhe dera dois lindos rapazes e uma bela moça.

Nessa hora, por debaixo dos refletores, ocupando sua cadeira com estofo azul, e com as mãos cruzadas posta por cima da mesa com tampo de vidro, ele esperava...

O cenário duma cor clara compunha-se da mesa do apresentador, do lado esquerdo uma mesa de mesma cor, com tampo de madeira, tinha duas cadeiras já ocupadas por dois convidados, e a da direita vinha da mesma forma atalhada; a parede do cenário à direita tinha a grande imagem da Represa Municipal, expondo seu encanto do sol da tarde; a esquerda resfolegava a imagem do imponente Mercado Municipal – um prédio antigo, dos tempos onde à cidade ainda não tinha seus mais de quatrocentos mil habitantes, ocasião em que o mercado era o grande centro de compra; e, defronte a platéia de 200 pessoas, por detrás do apresentador, presa na parede, como a aranha que prende a mosca, a Meca de São José do Rio Preto: o Calçadão, cerne de aquisição que tinha por seu calçamento as passadas da populaça – público alvo do show.

A idéia do cenário era mostrar ao povo que a atração lhes pertencia. Porém, ao centro, na cadeira vazia, de estofo azul e de encosto alto, os olhares esperavam se deitar, uma vez que ali, em instantes, sentar-se-ia à morte – como anunciava os comerciais.

Osmar, vestindo o mais perfeito terno preto, uma camisa branca e gravata vermelha, sorriu quando um homem a dez passos dele, com fones no ouvido e um pequeno microfone curvado na boca, anunciou:

— Entraremos no ar em trinta segundos.

Por sobre o tampo de vidro, as mãos se retorciam na expectativa dum colegial; os olhos vidrados na câmera ansiavam pela maior audiência do ano e conseqüentemente, dando-lhe um segundo aperto de mãos em Silvio Santos, trazendo para o escritório mais uma estatueta. Ora, fora para isso que passou três meses insistindo para que o adolescente lhe viesse desnudar a maligna.

Pensava constantemente nos melhores convidados para alvoroçar a arena com discordâncias. Pois bem, após tudo muito bem preparado, queria ver nos jornais do dia seguinte seu rosto – era um narcisista, um egocêntrico – lutava todos os dias para ser notícia.

Os segundos desapareceram, a contagem regressiva terminou, os holofotes caíram naquela fisionomia de mármore sorridente sendo observado não só pelos duzentos presentes – agora eram milhares de brasileiros fitando-o:

— Boa noite! – Os aplausos vieram num frenesi, fazendo-lhe alargar a felicidade; o ego dilatando com os ares de bem-amado. Prosseguiu ao diminuir da ovação: – Para entrevistar o obsequiado dessa noite, convidamos o psiquiatra e escritor, Mário Stanislaw...

A câmara mirrou o homem sentado ao lado direito do apresentador: mesmo assentado, percebia-se que ultrapassava os dois metros; os cabelos e a barba ruiva, contrastando com a pele branca, denunciavam uma descendência russa; no semblante sempre sério, o respeito imposto por um homem aborrecido – com um gesto de cabeça, quase imperceptível, cumprimentou a platéia. Trovejaram aplausos, e assim foi a cada exposição.

Na roda ainda encontrava-se, ao lado do psiquiatra, a diretora da Fundação de Estudos Para-normais, Cecília Garcia: branca ao extremo, pincelada na face à vermelhidão dum suíno, um corpo avantajado, busto abundante, cabelos negros preso num coque apertado e sorriso cândido, levantou as mãos rechonchudas num “olá” aos que a assistiam.

Do lado esquerdo de Osmar, o médium Flávio Drummond, com óculos de aros escuros acocorado na ponta do nariz fino, retirou os olhos acinzentados dos papéis que lia ao ser anunciado; não media mais que um metro e quarenta; corpo raquítico, e mesmo sendo de uma cor caramelo, parecia trazer na face e na calva, cores dum achaque. Todavia, quando disse “oi” para platéia, a voz lhe escapou como que vindo do céu, num formato de trovão, descombinado completamente com a compleição.

Completando a roda, posto ao lado do médium de propósito, estava Adolfo Magalhães, amigo íntimo do apresentador, dedicado à literatura, com mais de dez livros escritos, sendo que o último chamava-se: Adeus, Deus!, um ensaio sobre como o mundo seria melhor se o homem não tivesse criado a figura, a fantasia idiota, como ele próprio dizia, de Deus. Além de cético, já estivera ali por outras vezes, desafiando os homens de fé a lhe provar que Deus era real; moreno de olhos claros, cabelos curtos, quase raspados, óculos redondos sem aros, dependurava nos lábios sempre um deboche, e em suas frases a descrença.

Morte, o outro lado da vida, era o tema da noite; e esse tema trazia pela a arena um fenômeno editorial lançado há apenas um mês: Depoimentos do medo – livro que denunciou evidências sobrenaturais em seis crimes inexplicáveis, fazendo surgir das profundezas das crenças humanas, perguntas que ressoam e ressoará eternamente por sobre a humanidade: Os espíritos, Satanás e Deus existem? O que vem quando não resta mais nada, apenas um corpo putrefato? Seremos nós, atores diante duma platéia de homens mortos?

Esse era o tema da noite – aqueles horrores afixados na imprensa, o sangue derramado e as palavras do investigador numa coletiva: “O fato foi entendido como um suicídio coletivo; um findar de vida combinado”. Dito assim, sem explicação, de rompante, num expressar de desgraça de todo dia.

Mas a imprensa não se calou: O que levou esses jovens há um ato tão bárbaro? Ninguém se mata por folia, havia de se encontrar um pretexto. Além do mais, o mistério se avolumou devido a um sobrevivente que a polícia insistia em esconder.

Algo mudou durante as averiguações, quando um policial que esteve no local, não querendo mostrar o rosto, disse num programa de tevê:

— Não há qualquer possibilidade de ter sido suicídio devido à forma que os corpos foram achados. A polícia mudou a posição dos corpos. E quero dizer a vocês que existe um sobrevivente...

Daí a dias, quando se tentou encontrar o policial novamente, descobriu-se sua internação numa clínica psiquiátrica: “a cena vista trouxe-lhe transtornos” – declarou o investigador.

As notícias cessaram.

Um ano se passou; dois anos se passaram; ninguém mais, exceto as famílias que tiveram seu idílio destruído, lembrava-se das atrocidades, e mesmo os familiares não tinham vontade de falar do assunto, numa ilusão de que dores relembradas doessem em dobro...

Agora, desenterrando esses desgostos a golpe de enxadão, ressuscitando nas lembranças o horror, e trazendo arrastada por suas mãos a figura agourenta daquele extermínio, um singular sobrevivente, não se sabe por que, vinha trazer-lhes o passado.

A platéia ficou de pé numa ovação a sombra que surgia ao fundo do estúdio, ao lado esquerdo donde estavam os entrevistadores, trazido por um toque meigo de piano; avolumando-se, a sombra foi-se transformando numa montanha: um rapaz de vinte anos, dum 1,75m, olhos castanhos impacientes e angustiados, num caminhar desesperançado.

Apesar disso, ainda esperava falar ao povo de suas desventuras – sua dor. Outrora de um moreno delgado, tornara-se agora duma acromática e sobre-humana coloração. Enfiado numa calça jeans preta, camisa pólo de algodão e tênis Puma, cumprimentou a platéia com um aceno de cabeça antes de alcançar a cadeira, e do mesmo modo, deitou olhar a seus algozes.

Sentou-se ao centro, numa esperança de que morresse ali mesmo – não queria levantar, naquele instante não queria nem falar, pesava-lhe a revelação. Na mão o livro de suas memórias desesperadoras e sobrenaturais.

Com grande devoção abraçou o exemplar enquanto Osmar falava com o público nacional olhando para a câmera 1. É verdade que ele havia procurado o jovem logo que terminou de ler o livro, é fato também que o moço tinha se recusado a falar numa emissora de tevê. Não obstante, tendo grande persuasão, ali estava o jovem a receber-lhe a primeira inquirição:

— Boa noite, Bruno! – Não houve resposta, somente um acenar de cabeça. – Para começar nossa conversa, gostaria que nos falasse um pouco de seu livro.

Vendo a face dos interrogadores, a expressão de medo pendurada na fisionomia do entrevistado, e na platéia a incredulidade pairou. Osmar torcia silenciosamente que o mancebo falasse; o fracasso seria traumatizante se aquele púbere que sofria de transtornos profundos, segundo os boatos, saísse correndo do estúdio.

Com voz branda, quase duma pessoa moribunda, aliviando de forma deleitosa o apresentador, Bruno falou:

— O livro – agarrou-se de forma demente ao volume –, narra os horrores do dia cinco...

Apontando para o alfarrábio, mostrando-o aos convidados, como se tais pessoas nunca o tivessem visto, discorria como num derradeiro momento, um profeta dando o último sermão: Nessa obra estava à verdade escusa, a despeito de muitos jornais ter-lhe classificado como relatos dum alienado, mentiras hipócritas tidas como verdade para vender... Para desmentir essas injúrias, revelar o episódio e acabar com a patuscada criada pelo investigador do caso, ele estava ali.

E seguido por um longo silêncio, um suspiro de exaustão da própria existência, veio-lhe as palavras:

— Afirma-se que tudo que escrevi é humanamente impossível, e nesse ponto estou de acordo com os oposicionistas da obra. As forças descritas aqui, ocorridas naquele local, não eram humanas...

“Seria humanamente impossível também um homem abrir o mar vermelho ou caminhar sobre as águas; é humanamente impraticável transformar-se água em vinho, multiplicar pães e peixes ou ressuscitar. Mas a humanidade acreditava nisso tendo por explicação à interferência da divindade. Naquela fazenda também houve uma força propulsora oposta às forças divinas.”

Bruno calou-se outra vez, como se nada mais houvesse a dizer, observando o semblante de cada um. Aproveitando-se dessa situação, Cecília inclinou-se em sua cadeira, deitando seus olhinhos pequenos naquele messias das trevas; entrelaçou os dedos, e:

— Existe um trecho de seu livro – abriu-se o livro, dependurou os óculos com aros dourado na ponta do nariz; pesquisando as páginas, continuou – onde diz: tivemos sonhos, presságios das mortes de nossos íntimos, cada qual prenunciando o fim do seu mais chegado. – Terminando a leitura, repousando os óculos por cima dos papéis sobre a mesa, fez a pergunta. – Que sonhos foram esses? Como o senhor teve conhecimento que todos os outros sonharam?

A luz caiu mais forte ao centro do estúdio e a voz sofrida vibrou nos tímpanos atentos:

— O mal, apenas porque já tínhamos visitado aquele lugar uma vez, nos escolheu para regressar até ali e nos liquidar; entretanto, mãos intercessoras do bem vieram em nosso socorro, mostrando-nos o que poderia acontecer se lá fossemos. Sonhei com um amigo morrendo sufocado dentro dum túmulo e em nenhum momento imaginei que aquilo se passaria no mausoléu da Fazenda Marmouton. Não dei acuidade ao que me era apontado. Para mim, e sei que para eles também, encarou-se os sonhos apenas como expectativa do passeio. Eram tantas histórias referentes ao lugar, tantos assuntos de morte, tragédia e suspense alusivo ao ambiente, que tínhamos o desejo de fazer, mesmo que por um momento, parte de tudo aquilo, conhecer o lugar onde viveu e morreu aquela mulher tão nefária. – Ninguém tirava os olhos dele, até mesmo as câmeras faziam questão de gravá-lo em todos os ângulos, dando nas telas de tevê, a cada momento, uma imagem diferente. – Assim como eu, eles também sonharam, pois no plano espiritual, e o sonho faz parte desse plano, estávamos sendo alertados para proteger-nos mutuamente.

Osmar, passando a mão esquerda pelos cabelos e bosquejando o sorriso que nada significava, quis saber:

— O senhor está dizendo que a amizade de vocês era ligada num plano imaterial e por isso eram, digamos, iluminados?

Não gostando da expressão “iluminados”, sentindo nessa palavra um deboche, respondeu de forma séria e concisa:

— Éramos amigos na terra, tutores mútuos no espírito. Por mais que o mal nos atraísse, por mais que nossos lados obscuros nos conduzissem para as trevas, ainda assim a mão de Deus fazia-se presente para a condução noutro caminho. No entanto, viramos as costas para o que Ele indicava, seguimos nossos próprios anseios e vaidades... Eis a tragédia...

O olhar se perdeu dentro de sua mente atormentada; o silêncio pesou no estúdio. Em casa, o telespectador não sabia o que pensar, apenas se comoviam, concordava, discordava, apontava o dedo para a tela do aparelho, acusando de charlatanismo, espírita de meia pataca; ou sorriam, admirando aquela pessoa abençoada, que vinha ali dizer-lhes que o Senhor sempre está a olhar por nós, dando-nos alternativas.

No estúdio, Bruno só deu sinal de sobriedade quando o psiquiatra lhe fez uma inquirição.

— Como foi capaz de descobrir tantas coisas sobre o ocorrido? De onde vem essa certeza de que seus amigos tiveram sonhos iguais aos seus? Como um jovem que era protestante, passou a andar por um logradouro tão distante do evangelismo?

Congelando os olhos por sobre o psiquiatra, ficou em total quietude por mais de um minuto, fazendo com que Osmar acreditasse que o entrevistado passava mal; contudo, assim que ele pensou em falar algo, o moço se fez ouvir:

— No prólogo do livro, trago explicitamente que os relatos não têm nenhuma intenção doutrinal, não é em hipótese alguma: católico, protestante ou espírita. Somente meu arremate sobre os fatos.

Ajeitando-se na cadeira, Mário perguntou bruscamente:

— Baseado em que, chegou a esses arremates?

— Em minha experiência no hospital psiquiátrico. Foi lá que encontrei Deus. – Todos perceberam o sorriso que surgiu na face de Osmar e de seu amigo Adolfo, entretanto as atenções de ambos rapidamente voltaram para o entrevistado e os sorrisos sumiram, a piadinha viria depois. – Foi lá, na solidão do quarto, imerso em minhas próprias reflexões, recebi a visita de espíritos que me contaram as vilezas ocorridas na outra vida.

Com um sorriso maior que seus lábios, o cético fez sua anedota mesclada com uma pergunta:

— Já ouvi dizer que Deus mora no céu, na terra ou em qualquer outra parte, mas nunca me veio à cabeça que ele morava num hospício. – Diante dessas palavras, Bruno se afundou na cadeira, não pelo escárnio, mas pela falta de respeito daquele ateísta; alguns na platéia sorriam, porém a maior parte, trazendo no coração a fé, indignou-se em meio a vaias e aplausos; foi necessário um intervalo comercial para se acalmar os ânimos.

Quando a atração voltou ao ar, Adolfo deixou o achincalhe de lado, partiu para um inquérito sério:

— Referente a essas visitações de fantasmas, você nunca pensou na hipótese obvia de que estava tendo ataques alucinógenos, entre muitas outras coisas explicáveis pela ciência?

Pela primeira vez, mesmo sem graça ou carisma, Bruno sorriu e usou os ares de escárnio do interrogador:

— Não foi Shakespeare que disse haver mais coisas entre o céu e a terra... – Ignorou o resto da frase, deixou de falar apenas com o cético e continuou num discurso amplo: – Após sair da clínica, com plenas faculdades mentais – enfatizou bem esse trecho dirigindo um olhar ao agnóstico –, procurei especialistas para saber o que foi essas visitas que tive durante a permanência no hospital.

Interrompendo o cético Adolfo, que se punha para frente, pronto para mais uma inquirição, almejando discordar da razão do dramaturgo inglês, o psiquiatra tomou a palavra:

— Que tipo de especialistas o senhor procurou?

E conforme a resposta esperada por Mário, Bruno não disse nomes de pessoas ligadas à psicologia:

— Médiuns, espíritas, pessoas entendidas nos assuntos de outras vidas. – Seu rosto já sem expressão pareceu murchar ainda mais; e em agonia completou: – Li vários livros; viajei para outros países, descobri a regressão; nessa ciência pude voltar ao passado, reviver aquele dia tão traumático, e com isso resolvi escrever o livro. As pessoas, familiares ou não, tem o direito de saber que tipo de força inexorável tirou-lhes filhos, amigos. Conhecer o que ceifou de forma tão violenta a juventude feliz que tínhamos.

Tremendo o lado esquerdo da boca e trazendo um brilho sinistro no olhar, o descrente perguntou:

— O senhor assevera ter sido almas atormentadas, vindas das profundezas do inferno, que mataram seus amigos?

Voltando-lhe as forças na fala, pondo-se na ponta da cadeira e abraçando o livro mais devotamente, quase num sinal de loucura:

— Eu vi o que aconteceu, fiz um retrocesso àqueles momentos. Afirmo que as forças do mal nos escolheram para estar lá naquele dia. Quando consegui me comunicar com Marie-Ange, ela me confirmou que sua mãe morreu com muita mágoa, raiva e um ódio que a atormentou durante toda a vida, continuando em morte. O espírito de sua mãe permanece naquele lugar, criando um ciclo de vingança inesgotável, atraindo aqueles que mais se aproximam do local para descarregar nesses pobres mortais, seu ódio de toda uma existência.

O psiquiatra, sentindo-se ofendido, vendo todo um estudo, uma ciência, e a razão serem pisoteados, expondo-se ali o ridículo das crendices de outros tempos, discursou de forma enfática, apontando-lhe o dedo e escarnecendo do aparvalhado:

— Quer que nós, homens de conhecimento, de estudos, viventes do século XXI, tome parte numa crendice da Idade Média, onde pessoas eram queimadas graças à ignorância da religião? O que quer com esse livro? Convencer a populaça de que fantasmas estão matando colegiais? O que ganha com isso? Não sei, talvez seja uma ação natural de defesa, tendo em vista, que logo no começo das investigações os dedos lhe tivessem sido apontado como principal suspeito dos crimes.

Saltando da cadeira em grande desalento, num grito de aflição:

— Não! Não tive nada haver com esses crimes! Mentira! Mentira! A própria polícia disse que foi suicídio.

Osmar apenas observava aquela discussão tão acalorada, imaginando os índices de audiência subindo.

Pondo-se de pé, com a coragem usada para lhe dar com pessoas insanas, o psiquiatra apoiou as duas mãos sobre a mesa, inclinou-se para ficar com o rosto bem perto do garoto:

— Você nega o que a polícia proferiu. Foi ou não suicídio o que aconteceu naquele sítio?

— Não! – O grito violento e desesperado escapou-lhe.

O soco na mesa fez Bruno recuar e cair sentado na cadeira; o psiquiatra gritou de forma jubilosa:

— Então foi assassinato, e pessoas mortas não tem nada que ver com isso. A vida não é um livro de Stephen King. Pessoas mortas não voltam do além para matarem educandos. Não houve, nem nunca haverá forças maléficas naquele lugar. Isso, e a suposta conversa que teve com Marie-Ange, são frutos de sua imaginação; essa garota morreu a mais de trinta anos e seu suposto diálogo não passou de um delírio. Os psiquiatras que lhe trataram me confirmaram isso. O senhor tinha desvarios todas às noites, repetindo por dias nomes de pessoas que nunca viu, mas que conhecia as histórias através de mexericos, lendas de cidade pequena.

Mário sentou-se, dando um ponto final em seu discurso. Os outros entrevistadores estavam congelados em suas poltronas, só o médium trazia pena no olhar, referente à ignorância do psiquiatra. Osmar rejubilava, olhando para um pequeno telão bem além da cabeça do diretor, a audiência nunca tinha alcançado um nível tão fenomenal.

De repente o silêncio foi quebrado pela voz chorosa do jovem, lágrimas corriam por seus olhos, e afundado na poltrona veio-lhe as palavras num suspirar:

— Aquela maldita mulher matou meus amigos.

Demonstrando uma emoção que não tinha, mas sem deixar a audiência cair, Osmar, para tirar as dúvidas de seus telespectadores, perguntou:

— Refere-se a que mulher?

— Cita Crispina Marmouton – disse o médium pela primeira vez, fazendo com que todos os olhares caíssem-lhe. Bruno, na sua poltrona, permaneceu de cabeça baixa, revivendo as cenas de sangue e medo, aqueles amigos, o porto seguro onde nunca mais aportaria; e o médium, naquela parceria muda com o entrevistado, explicava: – Uma mulher cruel, que cometeu suicídio em 1975, após uma rebelião de trabalhadores de sua fazenda; insurreição essa, articulada por um de seus amantes. Nessa parte da história há controversas. Dizem que esse homem era forçado a manter um caso com a patroa, chamava-se Josué. Outra versão conta que o levante foi feito em parceria com um velho chamado Arthur Rangel, poeta que fez fama entre os anos de 1950 e 1960, e desapareceu, nunca foi encontrado, mas dizem que ele teve um caso com Crispina, outros dizem que ele era seu tio. Ninguém sabe a verdadeira história sobre a revolta, mas aconteceu. – Ajeitou-se na cadeira, entrelaçou os dedos das mãos por sobre a mesa, observou Bruno levantar a cabeça e lhe deitar um olhar: – Já morta, Crispina tornou-se um espírito apegado ao mundo material e a um desejo insuportável de causar calamidades, recusa-se a aceitar a morte, recriando as cenas do dia que morreu num ciclo de trinta em trinta anos, pois no dia de sua morte estava completando essa idade. O mal escolhe suas vítimas...

O silêncio espalhou-se por todo cenário, na arquibancada pessoas tremiam diante das revelações, em casa as pessoas refletiam, e vendo o jovem escritor a chorar, também traziam aos olhos suas emoções.

De súbito, Bruno repousou o livro no colo, secou as lágrimas com as mãos e antes que Osmar chamasse os intervalos, começou a dizer, recebendo total atenção:

— Não tenho qualquer motivo acessível para explicar porque meus amigos foram escolhidos. Contudo, sei que todos nós fomos feitos e somos unidos por uma força chamada Deus. – As fúcsias em seus olhos lutavam para não cair. – Através dos milagres, o Criador prova sua existência e encaminha a humanidade numa trilha de paz, amor e esperança. Não nos enganemos! O mal também existe e é através da força do ódio existente em corações cruéis que o Demônio apresenta sua face, planta a sua semente e espalha a calamidade nas terras do Senhor. Sobre os sonhos que tive, posso usar um exemplo simples: Já ouviram dizer que pessoas, em suas horas derradeiras chamam por outras que já morreram? Talvez isso seja o Criador enviando uma mensagem de que o fim está próximo; somos programados para nascer e morrer, em sua grande misericórdia, vem o aviso dos céus. Os sonhos eram isso, uma advertência divina a qual não demos importância. – E provocando o psiquiatra. – Éramos estudantes, pessoas de razão e ciência, que se estivéssemos conectados com Deus, talvez tivéssemos lhe entendido a mensagem, e hoje não se estaria chorando aqueles que se foram. A razão e a ciência constroem uma nação, mas só a fé, o amor e a esperança, constituem um povo enraizado na paz. Estamos mais ligados ao plano espiritual do que imaginamos; entretanto, até chegarmos ao outro lado, é necessário escolher um caminho: o bem ou o mal.

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Para não descrever fisionomia, é só olhar a fotografia. O que eu gosto mesmo é livro, o deleite da ficção, o caminhar tranqüilo por histórias de outros, ou aquele navegar mais conturbado pelos volumes de Filosofia; aperto por muitas vezes as mãos de Platão, discordo de Sócrates, aplaudo Ruy Barbosa, sendo meus camaradas. Construo o alicerce de minha vida com alfarrábios.